quando meu pai foi embora eu não senti
só senti depois
quando perguntavam para mim
(que não sabia de nada)
por onde ele andava
tolinha, pensava em caminhos de longas distâncias
longas distâncias nos separava
uma grande ausência
e me ressentia do justo eu com meu pai
justo esse pai
justo eu sendo essa que sou
maioria do tempo esquecia dele
(tinha o meu avô e meu tio distante)
ou tentava
mas parece uma coisa
uma tentação
sempre que quero esquecer uma coisa é justo nisso que mais acabo pensando
cadê meu pai?
alguns dias era um susto perceber que eu podia muito bem viver sem meu pai e vivia sem ele
mas sentia dor nas coisas que só se podia fazer com um pai
como o dia dos pais na escola
ninguém desconfiava
eu fingia bem até pra mim mesma
e só na hora de dormir me desfazia
baixinho que era pra mamãe não ouvir
eu não entendia que era solidão aquela sensação de ser sem um pai
eu só existia na parte que diz respeito a mamãe
ao amor de mãe e a presença de mãe
e nisso estava completa
tanto que nem reparava que a parte sem pai crescia desfigurada
monstruosa até
procurava não dar ousadia sabe?
ainda não consigo decidir até que ponto essa parte sem pai é mais quem eu sou
tento não sentir
como quando me dei conta que ele se foi e nunca mais iria voltar do trabalho com balas no bolso para me dar
não falassem
doeria menos
mas insistem em me relacionar a ele
em cutucar a presença deformada que é a parte de mim sem meu pai
eu resisto
e muitas vezes finjo que é tudo exagero meu
até quando, me pergunto?
enquanto espero ainda na pele daquela menina de tranças pequena na varanda
que ele volte e me traga
depois de todo esse tempo tão longe
um pouco mais que balas