segunda-feira, 2 de novembro de 2020

200211

 

quando eu era pequena, lembro
vovó dizia que ia chover e cobria os espelhos e não me deixava ver desenho não pode ligar a televisão quando chove me dizia
chovia muito e eu não entendia porquê ela tinha tanto medo de algo tão bonito tão bom aquele cheiro cheiro do que, vó?
terra molhada a terra bem seca recebendo a chuva era aquilo soube mais tarde
eu em cima da cama, baldes e vassouras e panos, e água inundando a casa...
vovó com as mãos na cabeça e aquele olhar de quem sabe que não pode controlar a natureza esperando com pavor a próxima tragédia mesmo olhar de quando morria alguém
hoje eu sei era o olhar de quem estava consciente o tempo inteiro da fragilidade da vida
nunca me acostumava com o fim do dia boquinha da noite como ela dizia queria saber porque o céu ficava diferente de onde vinham as estrelas e pra onde iam durante o dia queria saber o que a noite significa e se aquele céu era o mesmo céu do mundo inteiro e quão grande era o mundo inteiro
vovó me tirava dessas divagações dizendo é muito grande minha filha sem nunca responder o que eu queria saber
perguntava sempre e depois? com um aperto no peito desde tão pequena um coisa que não era dor mas também não deixava de ser
depois depois deus é quem sabe dizia enquanto soltava a fumaça do cachimbo e enquanto fumava eu penteava seu cabelo
cantava na janela e brincava de ser outra pessoa desejando fazer tudo que não podia menina lutrida ele dizia puxando uma de minhas trancinhas eu sorria me sentindo elogiada então eu era alguma coisa era uma menina lutrida perguntava a todo mundo o que lutrida é examinando a mim mesma para se certificar de ser me convencendo que sim era
chorava muito queria demais
as pernas doíam e eu chorava mais sem entender o porquê todas as minhas amigas podiam correr na hora do recreio menos eu
mas as pernas de vó também doíam então as minhas podiam doer também ainda doem é assim que me sinto tão irremediavelmente ligada a vó guinha através da dor e da lembrança
teimava muito
emburrava
abria o berreiro por qualquer coisinha ninguém pode falar nada se dói toda
sozinha ninguém gostava das mesmas coisas e nem entendiam não queriam não aceitavam
não pedia nada só que não rissem de suas trancinhas
fugia de casa ou saia sem dizer pra onde ia se alegrando no êxito de chegar viva em casa depois de andar pela rua sem segurar na mão de ninguém
queria cantar pra sempre morrer cantando mais tarde descobriria que a cigarra já existe assim
quem são essas pessoas no quadro porque estão aí e onde estão então vó 
queria tudo em um segundo e no outro nem sabia mais o que é que queria
odiava os domingos porque não passava desenho
adorava o colo de vovó pegar na sua orelha mexer no cabelo
as vezes via uma coisa longe muito perto e a coisa perto via grande e um pouco longe
se sentia estranha que sensação era aquela só queria chorar porque não entendia e ninguém sabia explicar
atrás da porta da cozinha depois que vô apagava a luz tinha alguma coisa tinha sim
odiava o barulho de carros passando na rua tarde da noite e a zoada dos caminhões cruzando a estrada dava pra ouvir da cama que medo! era toda medrosa tapava os ouvidos e se concentrava em esquecer com toda força do mundo
mamãe tinha uma fita que sempre ouvia e sempre regravava mas só quando a música na rádio era boa
a escola era o melhor e o pior lugar do mundo muito inteligente todos diziam todos sabiam e o que mais
o pé de seriguela o pé de goiaba a cerca que cortou a barriga o arame que cortou tantas vezes sem nenhum remorso
"essa menina não é fácil" me doía toda com isso por que eu não sou fácil?
sabia que o tempo ia passar mas não sabia quando me preocupava toda com isso
aquelas coisas que passa na televisão é tudo verdade mãe?
acordava no meio da noite chorando com muito medo de tudo do desconhecido das pessoas do mundo de viver mas doença não era é porque a vó dá muito dengo
não era.
sentia muita dor de dente também só come doce
brincava só no quintal sorria pras plantas de mamãe e fingia ser feliz sem nem saber o que felicidade era mas que palavra bonita amor a escrevia em todas as páginas do caderno com letras grandes letra bonita cartas e mais cartas para tudo e toda gente
costumava pegar as pedras que encontrava na rua e que achava bonita
ouvir as conversas de gente grande era uma das coisas favoritas
esconder no quarto de vovó usar a saia dela uma toalha na cabeça inventando histórias será que é normal?
mamãe não podia sair de jeito nenhum sem mim
não suportava a ideia um segundo nem um segundo dela fazendo coisas e eu dentro de casa sem saber o quê
que mistério era aquele dos dentes amolecendo vovô arrancando outros crescendo no mesmíssimo lugar
meu pai sempre demora pra chegar em casa e a maioria das vezes era muito triste quando ele estava lá
o colo de mainha era como um refúgio ah! mamãe...
queria lápis de cor porque achava as cores tão bonitas
demorei muito a aprender andar de bicicleta, queria com todo coração uma mas nunca ganhava
ir pra outra série era só pra ganhar um caderno novo lápis com a ponta fininha precisava ser a menina da ponta de lápis mais fina da escola como eu vou ser?
abraçar meu avô quando ele me dava doce
assistir teletubbies
minha melhor amiga era melhor amiga de outra menina
queria crescer logo pra saber o que são as coisas de verdade
tinha muitos segredo mas nenhum que pudesse contar a alguém
queria conviver mais com a irmã minha irmã mais branca que eu mas que gosta de mim
que perigo! escorregava caía se arranhava toda arrancava a cabeça do dedo colocava a boca no mundo
aprendi a ler e ler tudo que via era a coisa mais legal do mundo eu podia eu sabia o que era aquilo agora podia saber muitas mais coisas ler era isso
queria muito crescer logo e tendo crescido desejava que não tivesse
pobre menina
a avó mimava muito
dizem

terça-feira, 5 de maio de 2020

20190310

quando meu pai foi embora eu não senti        
só senti depois
quando perguntavam para mim
(que não sabia de nada)
por onde ele andava
tolinha, pensava em caminhos de longas distâncias
longas distâncias nos separava
uma grande ausência
e me ressentia do justo eu com meu pai
justo esse pai
justo eu sendo essa que sou
maioria do tempo esquecia dele
(tinha o meu avô e meu tio distante)
ou tentava
mas parece uma coisa
uma tentação
sempre que quero esquecer uma coisa é justo nisso que mais acabo pensando
cadê meu pai?
alguns dias era um susto perceber que eu podia muito bem viver sem meu pai e vivia sem ele
mas sentia dor nas coisas que só se podia fazer com um pai
como o dia dos pais na escola
ninguém desconfiava
eu fingia bem até pra mim mesma
e só na hora de dormir me desfazia
baixinho que era pra mamãe não ouvir
eu não entendia que era solidão aquela sensação de ser sem um pai
eu só existia na parte que diz respeito a mamãe
ao amor de mãe e a presença de mãe
e nisso estava completa
tanto que nem reparava que a parte sem pai crescia desfigurada
monstruosa até
procurava não dar ousadia sabe?
ainda não consigo decidir até que ponto essa parte sem pai é mais quem eu sou
tento não sentir
como quando me dei conta que ele se foi e nunca mais iria voltar do trabalho com balas no bolso para me dar
não falassem
doeria menos
mas insistem em me relacionar a ele
em cutucar a presença deformada que é a parte de mim sem meu pai
eu resisto
e muitas vezes finjo que é tudo exagero meu
até quando, me pergunto?
enquanto espero ainda na pele daquela menina de tranças pequena na varanda
que ele volte e me traga
depois de todo esse tempo tão longe
um pouco mais que balas

sábado, 18 de maio de 2019

18052015

Hoje
neste dia tão claro
lá fora, lá dentro de alguém, em algum lugar
que seja quente
como um abraço
ou beijo de uma mãe querida

Hoje
neste dia talvez
acúmulo de outros tantos dias
nebuloso e obscuro
tateando a claridade
e encontrando o infinito
boca grande
escancarada
devorando todas as coisas
na sua tediosa eternidade

Hoje
é um prego fincado numa parede
nada pendurado
nada preso a ele
só aquela coisa cheia de ferrugem
existindo
numa parede vazia
existência oca
sem nenhum sentido

Hoje
eu diria que sim
seu pudesse dizer sim
pra qualquer coisa que fosse
e me penduraria nela
como uma criança gruda nas pernas de seu pai ou sua mãe

Hoje
um daqueles dias que se acorda
não se sabe pra quê
e continua vivendo
respirando
o coração continua batendo
embora eu não entenda bem
o porque desse trabalho todo
dia e noite feriados e datas comemorativas

Hoje
quero um abismo
pra cair de cabeça
quebrar cada osso do corpo
pra se sentir viva de dor e de vida
até morrer
se viver for isso

Hoje
cante baixinho
só pra mim, por favor
será que eu posso pedir isso?
cante logo
porque na minha idade as coisas não esperam
nem eu

Hoje
eu seguraria sua mão bem forte
e você a minha
será?
e arriscaria alguma alegria na vida
não, não cante

Hoje
dia repleto de coisas
e coisa nenhuma
a minha vontade
única
e verdadeira
é o silêncio
sentar pendurada na janela
jurando pra alguém que estou fazendo alguma coisa importante
e ser nada
apenas
só por hoje
sempre.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

quantas vezes eu tive que me reinventar?
muitas vezes
todas elas num momento de dor que eu achei que jamais fosse superar
caminhar pela rua sem saber pra onde vou ou pra onde voltar
um nó na garganta
uma dor na boca do estômago
a sensação de estar completamente perdida e só
e só
aquela dor latente
a certeza implícita de que viver não faz mesmo sentido
se vamos perdendo pessoas e coisas
se tudo muda
como se recupera de viver?

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

171310

estou caminhando em direção ao mar
três pedras em cada bolso
não
eu sou o homem no deserto
sempre com sede
não
eu sou a mulher a beira do penhasco
caindo em direção ao abismo
não
eu sou a criança sentada no chão
sozinha
engolindo o choro

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

30012017

tenho pensado exaustivamente no passado
envelhecer deve ser isso: colher os pedacinhos do "o que eu sou agora?!" "ah! como eu era antes..." e lembrar com saudade do que foi bom, e se contentar com isso, quase sorrindo... ou dizer pra si mesma que aprendeu alguma coisa com as quedas da vida e que mudou, que não comete os mesmo erros

meu corpo não é o mesmo, principalmente isso mudou, minha pele desbotou, meu cabelo mudou radicalmente, minhas pernas estão cada dia mais cansadas, minhas mãos começam apresentar os sinais de que o tempo está passando pra mim e rápido, minhas costas doem como se estivessem a sustentar o peso do mundo, meu rosto parece estagnado em uma expressão de pessoa com ar de inflexível, que possui um olhar entristecido e brilhante, com um sorriso meio duro, meio forçado, impenetrável e que permanecerá assim até a minha morte, mesmo que eu sorria com alegria ou que minha face contorça-se de dor
comparar é inevitável!

finalmente estou naquela idade em que me imaginei tantas vezes
tateio-me e dentro de mim eu já vivi tantas vidas! todas elas parecem que foram outras vidas, vidas inteiras que eu vivi e conheço, carrego as sensações, mas que me parecem tão estranhas que penso que são as memórias de outras pessoas, não eu, não essa de agora, que escreve e que chora. Mas sou também, sim, pensando bem, lá fundo, eu sou todas elas e estou certa que vivi todas aquelas coisas, e deve existir um motivo pelo qual eu sou o que sou e vivi o que vivi, certo?
tenho que acreditar que de alguma forma, no final, todas as histórias sobre mim que parecem tão paralelas, vão se encaixar, formando o desfecho de uma única história, maior e bem bonita, que faça sentido.

leio um trecho de A descoberta do Mundo em que Clarice diz:"ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo."
corro pro espelho, olho-me, percebo cada detalhe: as orelhas pequenas, os olhos escuros, as sobrancelhas grossas mal feitas, a boca apertada, esquecida de sorrir, o nariz da minha mãe, a testa maior do que o que eu queria que fosse, as bochechas que apertam os olhos quando eu tento sorrir, o cabelo, os ombros pequenos, meu corpo inteiro até os pés
é nesse corpo que habito e que parece pequeno demais pra me conter
então é assim que eu pareço ser quando me olham... tenho que me lembrar disso constantemente, porque as vezes eu esqueço e acho que alguém poderia me amar pelo que sou, pelo o que eu realmente sou, sabe? além dessa pele, desse cabelo, dessa boca retorcida e desses olhos que as vezes me parecem tão tristes, sim, até mesmo pra mim, tão cansados desse mundo...
os encaro assim, de tempos em tempos, em frente ao espelho, longos, taciturnos, parecendo alguma coisa em mim além de apenas os meus olhos, que tudo veem, tudo...
se fossem mesmo as janelas da alma, alguém poderia me ver através deles, sim? me olhar de volta.

não consigo estabelecer uma linha entre o que eu queria dizer, inicialmente, e o que estou dizendo agora.
é muito difícil ser coerente quando se está tão confuso.
uma coisa vai levando a outra coisa  que acaba sendo completamente diferente da coisa primeira
é, talvez o passar do tempo seja isso, também

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

"Meu Muito Querido:
Tenho a certeza de que estou novamente a enlouquecer: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Começo a ouvir vozes e não me consigo concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso - toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.
V.
Leonardo sai apressadamente da sala, corre pela escada abaixo. Diz à criada: "Acho que aconteceu alguma coisa a Mrs. Woolf. Acho que ela pode ter tentado matar-se. Para que lado foi? Viu-a sair de casa?".
A criada, em pânico, começa a chorar. Leonard corre pela porta fora e dirige-se para o rio, passando pela igreja e pelas ovelhas e ainda pelos salgueiros. Na margem do rio só encontra
um homem de casaco vermelho a pescar.
É levada rapidamente pela corrente. Parece voar, fantástica figura de braços abertos, cabelos soltos flutuantes, aba do casaco de peles enfunada atrás dela. Flutua pesadamente por entre dardos de granulosa luz castanha. Não vai longe. Os seus pés (os sapatos perderam-se) batem ocasionalmente no fundo e, quando tal acontece, levantam uma lenta nuvem de resíduos, repleta de silhuetas negras de esqueletos de folhas e que permanece quase imóvel na água depois de ela ter desaparecido de vista. Fitas de algas pretas-esverdeadas prendem-se-lhe aos cabelos e às peles do casaco e durante momentos os seus olhos são vendados por uma espessa faixa de ervas, que finalmente se solta e flutua, se enrola e desenrola e volta a enrolar-se.
Acaba por se deter contra uma das estacas da ponte de Southease. A corrente comprime-a, molesta-a, mas ela está firmemente colocada na base da grossa coluna quadrada, com as costas voltadas para o rio e o rosto contra a pedra. Está ali enrolada, com um braço dobrado contra o peito e o outro à tona sobre a elevação da anca. A alguma distância acima dela encontra-se a encrespada superfície luminosa, na qual o céu se reflete instavelmente, branco e carregado de nuvens, atravessado pelas formas recortadas a negro das gralhas. Carros e camionetas passam ruidosamente na ponte. Um rapazinho dos seus três anos, não mais, atravessa a ponte com a mãe, para junto do parapeito, baixa-se e enfia o pau que tem na mão entre as ripas do gradeamento, para que caia na água. A mãe diz-lhe que continue a andar, mas ele insiste em ficar um pouco mais, a ver o pau ser levado pela corrente.
Ali estão, num dia do princípio da segunda guerra mundial: o rapaz e a mãe na ponte, o pau a flutuar na superfície da água e o corpo de Virgínia no fundo do rio, como se ela estivesse a sonhar com a superfície, o pau, o rapaz e a mãe, o céu e as gralhas. Uma camioneta cor de azeitona baça atravessa a ponte, carregada de soldados de uniforme, que acenam ao rapazinho que acabou de atirar o pau ao rio. Ele retribui, acenando também. Pede à mãe que lhe pegue para poder ver melhor os soldados e se tornar mais visível para eles. Tudo isto penetra na ponte, ecoa na sua madeira e na sua pedra e penetra no corpo de Virginia. O seu rosto, comprimido de lado contra a estaca, absorve tudo: a camioneta e os soldados, a mãe e o filho."
- As Horas - Michael Cunningham