quando eu era pequena, lembro
vovó dizia que ia chover e cobria os espelhos e não me deixava ver desenho não pode ligar a televisão quando chove me dizia
chovia muito e eu não entendia porquê ela tinha tanto medo de algo tão bonito tão bom aquele cheiro cheiro do que, vó?
terra molhada a terra bem seca recebendo a chuva era aquilo soube mais tarde
eu em cima da cama, baldes e vassouras e panos, e água inundando a casa...
vovó com as mãos na cabeça e aquele olhar de quem sabe que não pode controlar a natureza esperando com pavor a próxima tragédia mesmo olhar de quando morria alguém
hoje eu sei era o olhar de quem estava consciente o tempo inteiro da fragilidade da vida
hoje eu sei era o olhar de quem estava consciente o tempo inteiro da fragilidade da vida
nunca me acostumava com o fim do dia boquinha da noite como ela dizia queria saber porque o céu ficava diferente de onde vinham as estrelas e pra onde iam durante o dia queria saber o que a noite significa e se aquele céu era o mesmo céu do mundo inteiro e quão grande era o mundo inteiro
vovó me tirava dessas divagações dizendo é muito grande minha filha sem nunca responder o que eu queria saber
perguntava sempre e depois? com um aperto no peito desde tão pequena um coisa que não era dor mas também não deixava de ser
depois depois deus é quem sabe dizia enquanto soltava a fumaça do cachimbo e enquanto fumava eu penteava seu cabelo
depois depois deus é quem sabe dizia enquanto soltava a fumaça do cachimbo e enquanto fumava eu penteava seu cabelo
cantava na janela e brincava de ser outra pessoa desejando fazer tudo que não podia menina lutrida ele dizia puxando uma de minhas trancinhas eu sorria me sentindo elogiada então eu era alguma coisa era uma menina lutrida perguntava a todo mundo o que lutrida é examinando a mim mesma para se certificar de ser me convencendo que sim era
chorava muito queria demais
as pernas doíam e eu chorava mais sem entender o porquê todas as minhas amigas podiam correr na hora do recreio menos eu
mas as pernas de vó também doíam então as minhas podiam doer também ainda doem é assim que me sinto tão irremediavelmente ligada a vó guinha através da dor e da lembrança
teimava muito
emburrava
abria o berreiro por qualquer coisinha ninguém pode falar nada se dói toda
sozinha ninguém gostava das mesmas coisas e nem entendiam não queriam não aceitavam
não pedia nada só que não rissem de suas trancinhas
fugia de casa ou saia sem dizer pra onde ia se alegrando no êxito de chegar viva em casa depois de andar pela rua sem segurar na mão de ninguém
queria cantar pra sempre morrer cantando mais tarde descobriria que a cigarra já existe assim
quem são essas pessoas no quadro porque estão aí e onde estão então vó
queria tudo em um segundo e no outro nem sabia mais o que é que queria
odiava os domingos porque não passava desenho
adorava o colo de vovó pegar na sua orelha mexer no cabelo
as vezes via uma coisa longe muito perto e a coisa perto via grande e um pouco longe
se sentia estranha que sensação era aquela só queria chorar porque não entendia e ninguém sabia explicar
atrás da porta da cozinha depois que vô apagava a luz tinha alguma coisa tinha sim
odiava o barulho de carros passando na rua tarde da noite e a zoada dos caminhões cruzando a estrada dava pra ouvir da cama que medo! era toda medrosa tapava os ouvidos e se concentrava em esquecer com toda força do mundo
mamãe tinha uma fita que sempre ouvia e sempre regravava mas só quando a música na rádio era boa
a escola era o melhor e o pior lugar do mundo muito inteligente todos diziam todos sabiam e o que mais
o pé de seriguela o pé de goiaba a cerca que cortou a barriga o arame que cortou tantas vezes sem nenhum remorso
"essa menina não é fácil" me doía toda com isso por que eu não sou fácil?
sabia que o tempo ia passar mas não sabia quando me preocupava toda com isso
aquelas coisas que passa na televisão é tudo verdade mãe?
acordava no meio da noite chorando com muito medo de tudo do desconhecido das pessoas do mundo de viver mas doença não era é porque a vó dá muito dengo
não era.
não era.
sentia muita dor de dente também só come doce
brincava só no quintal sorria pras plantas de mamãe e fingia ser feliz sem nem saber o que felicidade era mas que palavra bonita amor a escrevia em todas as páginas do caderno com letras grandes letra bonita cartas e mais cartas para tudo e toda gente
costumava pegar as pedras que encontrava na rua e que achava bonita
ouvir as conversas de gente grande era uma das coisas favoritas
esconder no quarto de vovó usar a saia dela uma toalha na cabeça inventando histórias será que é normal?
mamãe não podia sair de jeito nenhum sem mim
não suportava a ideia um segundo nem um segundo dela fazendo coisas e eu dentro de casa sem saber o quê
que mistério era aquele dos dentes amolecendo vovô arrancando outros crescendo no mesmíssimo lugar
meu pai sempre demora pra chegar em casa e a maioria das vezes era muito triste quando ele estava lá
o colo de mainha era como um refúgio ah! mamãe...
queria lápis de cor porque achava as cores tão bonitas
demorei muito a aprender andar de bicicleta, queria com todo coração uma mas nunca ganhava
ir pra outra série era só pra ganhar um caderno novo lápis com a ponta fininha precisava ser a menina da ponta de lápis mais fina da escola como eu vou ser?
abraçar meu avô quando ele me dava doce
assistir teletubbies
minha melhor amiga era melhor amiga de outra menina
queria crescer logo pra saber o que são as coisas de verdade
tinha muitos segredo mas nenhum que pudesse contar a alguém
queria conviver mais com a irmã minha irmã mais branca que eu mas que gosta de mim
que perigo! escorregava caía se arranhava toda arrancava a cabeça do dedo colocava a boca no mundo
aprendi a ler e ler tudo que via era a coisa mais legal do mundo eu podia eu sabia o que era aquilo agora podia saber muitas mais coisas ler era isso
queria muito crescer logo e tendo crescido desejava que não tivesse
pobre menina
a avó mimava muito
dizem