quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

"Meu Muito Querido:
Tenho a certeza de que estou novamente a enlouquecer: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Começo a ouvir vozes e não me consigo concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso - toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.
V.
Leonardo sai apressadamente da sala, corre pela escada abaixo. Diz à criada: "Acho que aconteceu alguma coisa a Mrs. Woolf. Acho que ela pode ter tentado matar-se. Para que lado foi? Viu-a sair de casa?".
A criada, em pânico, começa a chorar. Leonard corre pela porta fora e dirige-se para o rio, passando pela igreja e pelas ovelhas e ainda pelos salgueiros. Na margem do rio só encontra
um homem de casaco vermelho a pescar.
É levada rapidamente pela corrente. Parece voar, fantástica figura de braços abertos, cabelos soltos flutuantes, aba do casaco de peles enfunada atrás dela. Flutua pesadamente por entre dardos de granulosa luz castanha. Não vai longe. Os seus pés (os sapatos perderam-se) batem ocasionalmente no fundo e, quando tal acontece, levantam uma lenta nuvem de resíduos, repleta de silhuetas negras de esqueletos de folhas e que permanece quase imóvel na água depois de ela ter desaparecido de vista. Fitas de algas pretas-esverdeadas prendem-se-lhe aos cabelos e às peles do casaco e durante momentos os seus olhos são vendados por uma espessa faixa de ervas, que finalmente se solta e flutua, se enrola e desenrola e volta a enrolar-se.
Acaba por se deter contra uma das estacas da ponte de Southease. A corrente comprime-a, molesta-a, mas ela está firmemente colocada na base da grossa coluna quadrada, com as costas voltadas para o rio e o rosto contra a pedra. Está ali enrolada, com um braço dobrado contra o peito e o outro à tona sobre a elevação da anca. A alguma distância acima dela encontra-se a encrespada superfície luminosa, na qual o céu se reflete instavelmente, branco e carregado de nuvens, atravessado pelas formas recortadas a negro das gralhas. Carros e camionetas passam ruidosamente na ponte. Um rapazinho dos seus três anos, não mais, atravessa a ponte com a mãe, para junto do parapeito, baixa-se e enfia o pau que tem na mão entre as ripas do gradeamento, para que caia na água. A mãe diz-lhe que continue a andar, mas ele insiste em ficar um pouco mais, a ver o pau ser levado pela corrente.
Ali estão, num dia do princípio da segunda guerra mundial: o rapaz e a mãe na ponte, o pau a flutuar na superfície da água e o corpo de Virgínia no fundo do rio, como se ela estivesse a sonhar com a superfície, o pau, o rapaz e a mãe, o céu e as gralhas. Uma camioneta cor de azeitona baça atravessa a ponte, carregada de soldados de uniforme, que acenam ao rapazinho que acabou de atirar o pau ao rio. Ele retribui, acenando também. Pede à mãe que lhe pegue para poder ver melhor os soldados e se tornar mais visível para eles. Tudo isto penetra na ponte, ecoa na sua madeira e na sua pedra e penetra no corpo de Virginia. O seu rosto, comprimido de lado contra a estaca, absorve tudo: a camioneta e os soldados, a mãe e o filho."
- As Horas - Michael Cunningham


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