estou caminhando em direção ao mar
três pedras em cada bolso
não
eu sou o homem no deserto
sempre com sede
não
eu sou a mulher a beira do penhasco
caindo em direção ao abismo
não
eu sou a criança sentada no chão
sozinha
engolindo o choro
sexta-feira, 13 de outubro de 2017
segunda-feira, 30 de janeiro de 2017
30012017
tenho pensado exaustivamente no passado
envelhecer deve ser isso: colher os pedacinhos do "o que eu sou agora?!" "ah! como eu era antes..." e lembrar com saudade do que foi bom, e se contentar com isso, quase sorrindo... ou dizer pra si mesma que aprendeu alguma coisa com as quedas da vida e que mudou, que não comete os mesmo erros
meu corpo não é o mesmo, principalmente isso mudou, minha pele desbotou, meu cabelo mudou radicalmente, minhas pernas estão cada dia mais cansadas, minhas mãos começam apresentar os sinais de que o tempo está passando pra mim e rápido, minhas costas doem como se estivessem a sustentar o peso do mundo, meu rosto parece estagnado em uma expressão de pessoa com ar de inflexível, que possui um olhar entristecido e brilhante, com um sorriso meio duro, meio forçado, impenetrável e que permanecerá assim até a minha morte, mesmo que eu sorria com alegria ou que minha face contorça-se de dor
comparar é inevitável!
finalmente estou naquela idade em que me imaginei tantas vezes
tateio-me e dentro de mim eu já vivi tantas vidas! todas elas parecem que foram outras vidas, vidas inteiras que eu vivi e conheço, carrego as sensações, mas que me parecem tão estranhas que penso que são as memórias de outras pessoas, não eu, não essa de agora, que escreve e que chora. Mas sou também, sim, pensando bem, lá fundo, eu sou todas elas e estou certa que vivi todas aquelas coisas, e deve existir um motivo pelo qual eu sou o que sou e vivi o que vivi, certo?
tenho que acreditar que de alguma forma, no final, todas as histórias sobre mim que parecem tão paralelas, vão se encaixar, formando o desfecho de uma única história, maior e bem bonita, que faça sentido.
leio um trecho de A descoberta do Mundo em que Clarice diz:"ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo."
corro pro espelho, olho-me, percebo cada detalhe: as orelhas pequenas, os olhos escuros, as sobrancelhas grossas mal feitas, a boca apertada, esquecida de sorrir, o nariz da minha mãe, a testa maior do que o que eu queria que fosse, as bochechas que apertam os olhos quando eu tento sorrir, o cabelo, os ombros pequenos, meu corpo inteiro até os pés
é nesse corpo que habito e que parece pequeno demais pra me conter
então é assim que eu pareço ser quando me olham... tenho que me lembrar disso constantemente, porque as vezes eu esqueço e acho que alguém poderia me amar pelo que sou, pelo o que eu realmente sou, sabe? além dessa pele, desse cabelo, dessa boca retorcida e desses olhos que as vezes me parecem tão tristes, sim, até mesmo pra mim, tão cansados desse mundo...
os encaro assim, de tempos em tempos, em frente ao espelho, longos, taciturnos, parecendo alguma coisa em mim além de apenas os meus olhos, que tudo veem, tudo...
se fossem mesmo as janelas da alma, alguém poderia me ver através deles, sim? me olhar de volta.
não consigo estabelecer uma linha entre o que eu queria dizer, inicialmente, e o que estou dizendo agora.
é muito difícil ser coerente quando se está tão confuso.
uma coisa vai levando a outra coisa que acaba sendo completamente diferente da coisa primeira
é, talvez o passar do tempo seja isso, também
envelhecer deve ser isso: colher os pedacinhos do "o que eu sou agora?!" "ah! como eu era antes..." e lembrar com saudade do que foi bom, e se contentar com isso, quase sorrindo... ou dizer pra si mesma que aprendeu alguma coisa com as quedas da vida e que mudou, que não comete os mesmo erros
meu corpo não é o mesmo, principalmente isso mudou, minha pele desbotou, meu cabelo mudou radicalmente, minhas pernas estão cada dia mais cansadas, minhas mãos começam apresentar os sinais de que o tempo está passando pra mim e rápido, minhas costas doem como se estivessem a sustentar o peso do mundo, meu rosto parece estagnado em uma expressão de pessoa com ar de inflexível, que possui um olhar entristecido e brilhante, com um sorriso meio duro, meio forçado, impenetrável e que permanecerá assim até a minha morte, mesmo que eu sorria com alegria ou que minha face contorça-se de dor
comparar é inevitável!
finalmente estou naquela idade em que me imaginei tantas vezes
tateio-me e dentro de mim eu já vivi tantas vidas! todas elas parecem que foram outras vidas, vidas inteiras que eu vivi e conheço, carrego as sensações, mas que me parecem tão estranhas que penso que são as memórias de outras pessoas, não eu, não essa de agora, que escreve e que chora. Mas sou também, sim, pensando bem, lá fundo, eu sou todas elas e estou certa que vivi todas aquelas coisas, e deve existir um motivo pelo qual eu sou o que sou e vivi o que vivi, certo?
tenho que acreditar que de alguma forma, no final, todas as histórias sobre mim que parecem tão paralelas, vão se encaixar, formando o desfecho de uma única história, maior e bem bonita, que faça sentido.
leio um trecho de A descoberta do Mundo em que Clarice diz:"ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo."
corro pro espelho, olho-me, percebo cada detalhe: as orelhas pequenas, os olhos escuros, as sobrancelhas grossas mal feitas, a boca apertada, esquecida de sorrir, o nariz da minha mãe, a testa maior do que o que eu queria que fosse, as bochechas que apertam os olhos quando eu tento sorrir, o cabelo, os ombros pequenos, meu corpo inteiro até os pés
é nesse corpo que habito e que parece pequeno demais pra me conter
então é assim que eu pareço ser quando me olham... tenho que me lembrar disso constantemente, porque as vezes eu esqueço e acho que alguém poderia me amar pelo que sou, pelo o que eu realmente sou, sabe? além dessa pele, desse cabelo, dessa boca retorcida e desses olhos que as vezes me parecem tão tristes, sim, até mesmo pra mim, tão cansados desse mundo...
os encaro assim, de tempos em tempos, em frente ao espelho, longos, taciturnos, parecendo alguma coisa em mim além de apenas os meus olhos, que tudo veem, tudo...
se fossem mesmo as janelas da alma, alguém poderia me ver através deles, sim? me olhar de volta.
não consigo estabelecer uma linha entre o que eu queria dizer, inicialmente, e o que estou dizendo agora.
é muito difícil ser coerente quando se está tão confuso.
uma coisa vai levando a outra coisa que acaba sendo completamente diferente da coisa primeira
é, talvez o passar do tempo seja isso, também
quinta-feira, 5 de janeiro de 2017
"Meu Muito Querido:
Tenho a certeza de que estou novamente a enlouquecer: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Começo a ouvir vozes e não me consigo concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso - toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.
V.
Leonardo sai apressadamente da sala, corre pela escada abaixo. Diz à criada: "Acho que aconteceu alguma coisa a Mrs. Woolf. Acho que ela pode ter tentado matar-se. Para que lado foi? Viu-a sair de casa?".
A criada, em pânico, começa a chorar. Leonard corre pela porta fora e dirige-se para o rio, passando pela igreja e pelas ovelhas e ainda pelos salgueiros. Na margem do rio só encontra
um homem de casaco vermelho a pescar.
É levada rapidamente pela corrente. Parece voar, fantástica figura de braços abertos, cabelos soltos flutuantes, aba do casaco de peles enfunada atrás dela. Flutua pesadamente por entre dardos de granulosa luz castanha. Não vai longe. Os seus pés (os sapatos perderam-se) batem ocasionalmente no fundo e, quando tal acontece, levantam uma lenta nuvem de resíduos, repleta de silhuetas negras de esqueletos de folhas e que permanece quase imóvel na água depois de ela ter desaparecido de vista. Fitas de algas pretas-esverdeadas prendem-se-lhe aos cabelos e às peles do casaco e durante momentos os seus olhos são vendados por uma espessa faixa de ervas, que finalmente se solta e flutua, se enrola e desenrola e volta a enrolar-se.
Acaba por se deter contra uma das estacas da ponte de Southease. A corrente comprime-a, molesta-a, mas ela está firmemente colocada na base da grossa coluna quadrada, com as costas voltadas para o rio e o rosto contra a pedra. Está ali enrolada, com um braço dobrado contra o peito e o outro à tona sobre a elevação da anca. A alguma distância acima dela encontra-se a encrespada superfície luminosa, na qual o céu se reflete instavelmente, branco e carregado de nuvens, atravessado pelas formas recortadas a negro das gralhas. Carros e camionetas passam ruidosamente na ponte. Um rapazinho dos seus três anos, não mais, atravessa a ponte com a mãe, para junto do parapeito, baixa-se e enfia o pau que tem na mão entre as ripas do gradeamento, para que caia na água. A mãe diz-lhe que continue a andar, mas ele insiste em ficar um pouco mais, a ver o pau ser levado pela corrente.
Ali estão, num dia do princípio da segunda guerra mundial: o rapaz e a mãe na ponte, o pau a flutuar na superfície da água e o corpo de Virgínia no fundo do rio, como se ela estivesse a sonhar com a superfície, o pau, o rapaz e a mãe, o céu e as gralhas. Uma camioneta cor de azeitona baça atravessa a ponte, carregada de soldados de uniforme, que acenam ao rapazinho que acabou de atirar o pau ao rio. Ele retribui, acenando também. Pede à mãe que lhe pegue para poder ver melhor os soldados e se tornar mais visível para eles. Tudo isto penetra na ponte, ecoa na sua madeira e na sua pedra e penetra no corpo de Virginia. O seu rosto, comprimido de lado contra a estaca, absorve tudo: a camioneta e os soldados, a mãe e o filho."
- As Horas - Michael Cunningham
Tenho a certeza de que estou novamente a enlouquecer: sinto que não posso suportar outro desses terríveis períodos. E desta vez não me restabelecerei. Começo a ouvir vozes e não me consigo concentrar. Por isso vou fazer o que me parece ser o melhor. Deste-me a maior felicidade possível. Foste em todos os sentidos tudo o que qualquer pessoa podia ser. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes até surgir esta terrível doença. Não consigo lutar mais contra ela, sei que estou a destruir a tua vida, que sem mim poderias trabalhar. E trabalharás, eu sei. Como vês, nem isto consigo escrever como deve ser. Não consigo ler. O que quero dizer é que te devo toda a felicidade da minha vida. Foste inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom. Quero dizer isso - toda a gente o sabe. Se alguém me pudesse ter salvo, esse alguém terias sido tu. Perdi tudo menos a certeza da tua bondade. Não posso continuar a estragar a tua vida. Não creio que duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.
V.
Leonardo sai apressadamente da sala, corre pela escada abaixo. Diz à criada: "Acho que aconteceu alguma coisa a Mrs. Woolf. Acho que ela pode ter tentado matar-se. Para que lado foi? Viu-a sair de casa?".
A criada, em pânico, começa a chorar. Leonard corre pela porta fora e dirige-se para o rio, passando pela igreja e pelas ovelhas e ainda pelos salgueiros. Na margem do rio só encontra
um homem de casaco vermelho a pescar.
É levada rapidamente pela corrente. Parece voar, fantástica figura de braços abertos, cabelos soltos flutuantes, aba do casaco de peles enfunada atrás dela. Flutua pesadamente por entre dardos de granulosa luz castanha. Não vai longe. Os seus pés (os sapatos perderam-se) batem ocasionalmente no fundo e, quando tal acontece, levantam uma lenta nuvem de resíduos, repleta de silhuetas negras de esqueletos de folhas e que permanece quase imóvel na água depois de ela ter desaparecido de vista. Fitas de algas pretas-esverdeadas prendem-se-lhe aos cabelos e às peles do casaco e durante momentos os seus olhos são vendados por uma espessa faixa de ervas, que finalmente se solta e flutua, se enrola e desenrola e volta a enrolar-se.
Acaba por se deter contra uma das estacas da ponte de Southease. A corrente comprime-a, molesta-a, mas ela está firmemente colocada na base da grossa coluna quadrada, com as costas voltadas para o rio e o rosto contra a pedra. Está ali enrolada, com um braço dobrado contra o peito e o outro à tona sobre a elevação da anca. A alguma distância acima dela encontra-se a encrespada superfície luminosa, na qual o céu se reflete instavelmente, branco e carregado de nuvens, atravessado pelas formas recortadas a negro das gralhas. Carros e camionetas passam ruidosamente na ponte. Um rapazinho dos seus três anos, não mais, atravessa a ponte com a mãe, para junto do parapeito, baixa-se e enfia o pau que tem na mão entre as ripas do gradeamento, para que caia na água. A mãe diz-lhe que continue a andar, mas ele insiste em ficar um pouco mais, a ver o pau ser levado pela corrente.
Ali estão, num dia do princípio da segunda guerra mundial: o rapaz e a mãe na ponte, o pau a flutuar na superfície da água e o corpo de Virgínia no fundo do rio, como se ela estivesse a sonhar com a superfície, o pau, o rapaz e a mãe, o céu e as gralhas. Uma camioneta cor de azeitona baça atravessa a ponte, carregada de soldados de uniforme, que acenam ao rapazinho que acabou de atirar o pau ao rio. Ele retribui, acenando também. Pede à mãe que lhe pegue para poder ver melhor os soldados e se tornar mais visível para eles. Tudo isto penetra na ponte, ecoa na sua madeira e na sua pedra e penetra no corpo de Virginia. O seu rosto, comprimido de lado contra a estaca, absorve tudo: a camioneta e os soldados, a mãe e o filho."
- As Horas - Michael Cunningham
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